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sábado, 11 de novembro de 2023

Jeito

Desculpa meu jeito. É que de onde eu venho. Será que importa mesmo pra você de onde eu venho? É que não consigo me explicar, se não considerar os caminhos de onde vim. Foi lá, naquele Planalto Central, que me percebi calango. Eu sou a terra vermelha que mancha roupa clara. Sou a areia fina que me lembra o mar que meus avós nem meus pais conheceram. Eu sou as pedras e sou também a água gelada que verte delas. Eu sou a humildade do cabreiro. E sou o deboche da puta do puteiro mais vagabundo. Eu sou o sertanejo, o tempo seco, a pele rasgada no duro pau retorcido. Eu sou o próprio pau retorcido. Eu rio de tudo mas não rio pra você. Rio por mim mesmo. Eu sou o deboche do caipira diante das certezas de vocês. Eu sou do meio do país. E recebo a herança da violência, das correntes que passam e derrubam tudo. Metade verde de soja, metade marrom de mato. Eu sou uma vaca mojada. Eu sou um perdido do mundo. Não levo seu desaforo comigo, te cuspo de volta em um olhar cínico, naturalmente. Eu sou latino-americano, brasileiro, tocantinense e goiano. Eu sou uma bichinha que sabia muito bem o que é liberdade. Eu sou a própria corrente que arrebenta suas impressões mais sinceras, que te confunde, que te mistura, que te encanta. Eu sou o próprio rio Araguaia, que banha tantas terras e abençoa. E mata. Eu sou o perigo das águas fartas que afogam e sou o perigo da pouca água que não sacia. Eu sou Marília Mendonça, sou a viola dos antigos, sou o batuque de um tambor aprendido fora e ressoado dentro de um casco de árvore frondosa. Por favor, desculpa meu jeito.