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sexta-feira, 23 de outubro de 2015

O filho do velho

Abriu-se a porta do inferno.
Os anjos estão a solta!
Cavaleiros do apocalipse passam, montados em seus dragões, atrás dos demônios.
Sinto um arrepio esquisito.
Meu corpo não responde aos meus atos.
Me sinto velho, ando devagar.
Ao olhar pro lado,
a escuridão clareava.
Uma roda se fez a minha volta,
e com os olhos semicerrados,
percebia que estavam ali por minha causa.
Que querem com esse velho?,
pensava eu.
Começaram a chegar, cada vez mais gente.
O primeiro carregava um falo ENORME.
O segundo uma espada gigante.
O terceiro, quando apeou de seu cavalo,
vi um arco e flecha.
De repente eu não sei direito, chegou um coberto de palhas,
junto a outro coberto de folhas e uma cobra.
Fez-se um arco-íris.
Começaram a chegar as mulheres mais belas que já vi.
Foram chegando.
Alguém gritou Obá nixé Kaô e logo um homem, lindo, apareceu.
Ele carregava dois machados nas mãos.
Começaram a dançar! Em volta de mim.
Não existia mais escuridão, nem maldição.
Gritaram "epi epi babá" e da minha boca saiu um som de pombo.
Estava em meu corpo Oxalá, o mais velho, a luz,
pai de todas as cabeças, senhor da misericórdia.
Era sexta-feira.

Recado

Recebi um recado. Não lembro de onde veio, só que chegou como um tapa na cara. Ou um cuspe no meio da testa. Ou, quando criança, uma carícia por dentro das calças. Um recado que machuca, daqueles que assusta e deixa marcas psicológicas infelizes.
Depois que acordei, recebi um recado. Não foi um bilhete comum. Foi destes que os professores mandam para os pais gays referindo-se a uma mãe, daquelas pichações dizendo que Jesus está voltando, que a porta estreita é a melhor. Foi igual aquele bilhete que recebi aos 6 anos, escrito com letra infantil "bichinha".
O recado tem cheiro de sangue, aquele mesmo que saiu da minha boca quando me jogaram no chão me acusando de ser afeminado. Tem gosto salgado, aquele que eu senti quando chorei ao ver minha irmã ser violentada dentro do coletivo e ninguém disse nada.
Nas entrelinhas, muito claramente, consigo ver meu pai dizendo que nunca vai me aceitar, quando disse que sou gay. Que coisa, não? Parece muito também quando eu fui chamado de filho do demônio quando passava na rua vestido de branco e com meu delogun porquê era sexta-feira, dia de Oxalá.
Sabe aquele recado triste, doloroso? O recebi hoje. Novamente!

quinta-feira, 22 de outubro de 2015

Títulos para a atualidade


Não durma.
Os otimistas querem ir embora desse lugar.
Estão querendo acabar com a gente.
Segura que o baque é forte.
E há de piorar.
Aqueles, quem não passarão?
De que vive o homem? Que homem?
Num piscar de olhos decidem seu futuro.
Tem gente decidindo pela gente.
Já pode ir embora?
Não durma.

sexta-feira, 16 de outubro de 2015

O velho do pano branco

Quando é fé, 
apareceu no alto da ladeira, 
como numa miragem, 
aquele velho abaixado todo de branco. 
A travessa toda parou.
Joguem canjica,
representemos o casamento da luz com a Terra.
"A bênção", gritavam.
E ele, batia sua bengala prateada.
Todos vinham ver o velho Obatalá passar.

quarta-feira, 14 de outubro de 2015

Quarta-feira

Na quarta-feira, 
costumava apanhar quiabo no pé, 
refogar no dendê 
temperado com camarão e cebola. 
Servia bem quente, 
dentro da gamela
feita da madeira mais inflamável.
Na porta da frente,
folha de dendezeiro desfiada,
não era qualquer um que entrava.
Pedia licença,
também em saudação,
às senhoras do vento e das águas revoltosas.
Porém na quarta servia o Rei,
aquele em que a coroa flamejante
protege sua cabeça e seus passos,
senhor da sua vida
e do seu destino.
No meio da semana,
a senhora mirrada da casa ao lado,
"Kabiecile",
gritava,
e logo um brado se escutava.
Como menino curioso,
por cima do muro eu olhava:
Pedra rolava e o fogo dançava!

segunda-feira, 12 de outubro de 2015

O menino que cresceu

Um dia, quando o menino acordou, já era grande. Não muito, mas o suficiente para não conseguir subir no vão da porta com liberdade ou pedir balinha na venda sem causar constrangimento nos seus pais pela falta de dinheiro. Sem entender nada, o menino continuou seu caminho e descobriu que não cabia mais no berço, nem nos colos que antes o deitavam. Agora era necessário fazer sua própria comida, andar pelas próprias pernas e controlar suas palavras, que antes faziam as pessoas chamarem-no de "gracinha" e hoje de "ridículo". Continuando e passando os dias, o menino foi se tornando cada vez mais velho e percebeu que aquilo devia ser o famoso crescer.O menino aprendeu, crescendo, que quando o perguntavam o que ele seria quando crescesse não condiziria necessariamente com o que ele realmente se tornaria. Viu que se preocuparia com coisas bobas considerando-as importantes. E, pouco a pouco, foi parando de achar importantes aquelas coisas que os adultos chamavam de bobas.Um dia, se levantando de súbito de um pesadelo, sentou-se na cama e pôs-se a pensar: quando menino o menino não chamava nada de pesadelo, eram sonhos ruins. Não reclamava do calor pois conhecia a sombra das árvores. E não tinha medo do mundo. Quis voltar a ser criança. Na tentativa, percebeu que tinham coisas boas em ter virado um menino adulto (como resolveu se chamar), como perder o medo de escuro e andar sozinho na rua qualquer hora do dia. Foi aí que o menino reencontrou a criança que existia dentro dele. E nesse momento, viu-se como um super-herói. Conseguia ter o brilho nos olhos dos pequenos e um abraço dos grandes. A vida que passava rápido agora passava no tempo certo. Quando fosse 'menino adulto velho', o agora 'menino adulto' tinha a certeza de um adulto e a esperança de uma criança que outro mundo o apareceria. Esperou como alguém que só espera. Não tinha mais medo de envelhecer. Até porque envelhecer pro menino significa crescer. E quanto mais velho maior!Feliz dia das crianças prxs meninxs, meninxs adultxs e meninxs velhxs!

segunda-feira, 5 de outubro de 2015

Ilustrações

Cheio de histórias mal contadas no meio, como quem perdeu várias mães que lhe liam os livros durante a vida, o menino se vê encontrando formas de costurar, retalho por retalho o que sobrou. O próximo amor do menino, esse sim há de ser o retalho. Se não, ainda falta um tanto para completar a calça. Enquanto isso, revê os retratos, como quem vê as ilustrações. Hoje o menino, não tendo quem lê para ele, vive de ler as figuras. Elas sorriem e isso já o basta para abrir-lhe um frio gostoso nas memórias.