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domingo, 30 de abril de 2017

Cerrádico

Eu, que sempre fui úmido, lânguido e aparentemente chuvoso, sequei o chão, entortei o caule, abaixei. Pego fogo só pra me ver renascer, e enquanto as chamas consomem minhas flores, preparo minhas sementes. Aprendi a guardar líquidos vitais dentro de mim, pra reflorir. Do calor sempre me afeiçoei. Quem passa por esse chão o faz rastejando, encostando a maior parte do corpo. Entre cobras e lagartos, sinto o toque e esquento a relação. Terra inflamável, só sobrevive quem sabe correr quando necessário. Em mim nascem as águas que saciam a sede, que fazem crescer as árvores de um país inteiro. Crescem os poços, tomam banho em mim, mergulham, me bebem. Escorro-me. Por fora sequidão, por dentro mar aberto. Empobrecido de nutrientes, aprendi me valer com o pouco que me sobra. Ainda assim me divido, me retorto, me refaço pro mundo. Me destroem. Acho lindo os amazônicos, mas valorizo os cerrádicos.

quinta-feira, 27 de abril de 2017

A Guerra

Queria, na guerra, ligar o foda-se. Não participar de frente. Estar dormindo enquanto as bombas estouram os miolos dos soldados. Guerra é guerra, segue-se o fluxo dos mísseis, não dá tempo para a desatenção, qualquer fala é passível de morte. Em cada esquina uma proteção, no meio da rua um ataque. Não existe civil. 
Na guerra, só contabilizaremos os perdidos depois da última batalha. Só choraremos os mortos depois do último tiro. Em guerra o tempo corre diferente, hora mais rápido hora cerrado. Em guerra, sorriso é força, abraço é escudo e esperança é arma. 
No campo de concentração morrem aos poucos os primeiros combatentes. Em algum momento salvos. Não queria estar em guerra. Queria poder olhar os campos verdes de outrora, nesse deserto ao qual nos afundamos em areia movediça. Perdido, caminho, encontro outros cegos e aleijados no caminho. Vejo uma janela.
Longe, talvez nem tanto, uma miragem de reencontro. Um ponto forte de energia que segura as mãos dos mais atingidos. Nossos espíritos se unem em força, em luz e em cuidado. Vejo um trem bom, não sei direito o que é, talvez por tanta poeira de parede dos prédios derrubados dentro de mim; talvez por nunca ter experimentado nada parecido. 
Mergulho, e debaixo dágua respiro. Tudo muda. Emerjo, e o sol já aparece, como um fim de tarde tranquilo em cidade do interior, de onde surgem horizontes diferentes, um mais bonito que o outro. A noite virou pôr do sol. O tempo conta-se natural, nem muito nem pouco.

segunda-feira, 24 de abril de 2017

Carta #1

Goiânia, 24 de abril de 2017

Morei em cinco estados diferentes, tive contato com muitas pessoas que até hoje são importantes para mim. Criei afetos e amizades sinceras em todos esse lugares e todo dia revivo memórias. Gosto de observar, tanto quanto de conversar.
Quando eu era pequeno gostava de fazer excursão, que queria dizer expedição. Descobrir cantos, buracos. Só gostava do céu a partir do pôr do sol, quando mirava as estrelas. Me apaixonei por elas como pelos cantos miúdos e escondidos da terra. Carreguei isso comigo.
Eu falo alto quando estou afoito e feliz. Com raiva falo baixinho. Não sei porquê, mas isso me faz muito bem. Gosto de conversar com pessoas e fotografar lugares. Às vezes perco o tempo da foto pra ficar olhando, e não converso com pessoas pra sentí-las, o que me faz bem também. 
Todos meus amigos e amigas querem viajar o mundo fotografando-o. Eu só queria descobrí-lo. Aprendi, desde pequeno, a conhecer os buracos e as estrelas dos lugares. E deve ter tantos nesse mundão. 

A cabeça está lá.
Não adianta a resiliência. Nem a crença, nem o amor.
A cabeça continua lá.
Muito importam as pessoas, exporta sentimentos.
A cabeça continua indo.
De jeito nenhum que volta, o coração acompanha. Dão as mãos.
Cadê pé pra ir?
A cabeça e coração estão lá. Olham para trás com um afeto imenso, mas continuam lugar longe, verbo futuro.
Vão parar, fazer uma roda de dois, pedindo aos céus que façam os pés acompanharem.
O façam rápido!
Pé sem coração é triste e sem cabeça confuso.

quarta-feira, 19 de abril de 2017

Quem me nina é Oxum

A mãe da água doce
Rainha do balanço
Mulher com voz de mando
Menina a brincar
Na beira do rio
No fundo da água
A deusa do ouro
Tu és meu tesouro
Dança pra mim
Quem me nina é Oxum
Que menina é Oxum
O rio, Oxum
Oxum
Com a anágua
Da sua saia
Seca as lágrimas
Dos filhos seus
Quem me nina é Oxum
O rio
Oxum
Yê yê ô

domingo, 16 de abril de 2017

conto reencontrado não finalizado

À noite, enquanto Mitra dorme, Zé assiste sua televisão e Andrea pega seu ônibus, seu último ônibus para ir para casa. Depois de passar debaixo da catraca enquanto o fiscal do ponto não via, estava ali naquele terminal, o mesmo de alguns anos desde que se mudara para Goiânia. A faculdade havia largado e nunca mais aparecido no campus, salvo as vezes em que queria ser salvo, ou de bebida, ou de maconha. Tinha diminuído o uso do 'braw', mas vez ou outra, frente ao pôr do sol quase sempre alaranjado dos meses depois de julho na cidade, se animava em acender 'um' em alguma rua do Centro, menos movimentada, e fumar naturalmente, como se fosse o Dunhill, sempre acompanhante do “verdim”.
Mitra, que tinha esse nome porquê segundo seu pai, parecia um “solzim”, de tanta luz que acendeu na sala de parto. A mãe, morta no parto, não teve chance de visualizar tanta claridade. Dentro dela, se apagava a faísca, dando o protagonismo para o filho. Hoje descoberta filha. Dormia cedo porquê trabalhava num desses hipermercados, serviços gerais. O expediente começava às 7h, o que fazia com que Mitra levantasse todos os dias 5:30, tomasse seu banho e café da manhã, pegasse sua moto recém comprada e levasse mais trinta minutos até o trabalho. Gostava de banho demorado.
Calado, Andrea se revezava entre sentar no meio fio do terminal ou fumar um cigarro no fundo da última gente que ia para casa naquele último ônibus, que passava às 23:45. Sempre chegava adiantado no terminal e atrasado em casa. Aquela hora, por exemplo, era 23:10. Cansado, cochilava dentro do ônibus, já que demorava algum tempo dali até sua casa.

Zé arruma a cama de solteiro, já para se deitar, ao mesmo tempo em que Andrea abria a porta de sua casa, tentando fazer o menor barulho possível, para não acordar a família que já dorme. Mitra está em seu sétimo sono.  

sábado, 15 de abril de 2017

um processo abandonado e reencontrado

Som de floresta. Bichos diversos. Pássaros, mamíferos, feras. O som vai aumentando.
Palco vazio. Luz baixa, esverdeada.

Entra Flávia, desconfiada, olha para a plateia, vai até o meio e volta a se esconder.
Entra Régis, do outro lado do palco, também desconfiado. Régis carrega numa das mãos pedras. Volta correndo pra coxia novamente.
Entra Flávia e Régis, muito desconfiados de costas um para o outro. Param a certa distância um do outro, e ainda de costas, dão um grito gutural. A música cessa. A luz aumenta.

Flávia: Chega!
Régis: Já viu?
Flávia: Não, cansei.
Régis: Flávia, não dá pra cansar na selva.
Flávia: Eu cansei. Que me comam. Que me matem. Não vou correr.
Régis: Agora não vão querer mais. (Sorri)
Flávia: Me entreguei, né? Vão me apedrejar, “a oferecida da mata”.
Régis: Piriguete selvagem. (Gargalham)
Flávia: Essas coisas são malucas. Pensa comigo, são todos ditos selvagens, respondem por seus instintos, gritam com você, cospem na sua cara, te perseguem, te batem, te matam. São animais, então está tudo certo.
Régis: É isso. A partir de hoje sou um animal. Um bicho.
Flávia: O quê?
Régis: É isso, se não posso sendo diferente, usarei o mesmo direito. Serei igual. (Gritando para que todos ouçam) A partir de agora estou do lado dos animais selvagens, daqueles que bradam aos quatro cantos sua intolerância com bichos menores. Bato no peito.
Flávia: Régis, que vexame.
Régis: Você vai ver. Desculpa, agora você está sozinha. Passei pro lado deles.
Flávia: Régis, até afeminado você é. Pára com isso.
Régis: Vou falar com o gorila, avisá-lo que sou da parte selvagem. (Sai)

Flávia: Que coisa não? Régis agora é macho selvagem. É um direito. Só quero ver como ele vai lidar com essa situação quando mandarem ele ir lá na casa dos pais dele... coitada da mãe. Ah, qualquer coisa é só fazer como ele, sejam selvagens, seja igual os outros e não sofrerá.

quarta-feira, 12 de abril de 2017

memória da desintegração

em fragmentos,  uma memória reconstrói os caminhos que andei culpam os planetas  e suas posições.  o kama sutra celeste confunde.  nem todas possibilidades do mundo conseguiriam traduzir o movimento das estrelas. um sexo tântrico é feito entre os astros como quando estou amarrado nos seus braços. somos lua e vênus, num crescente envolvimento. gozamos via lactea.

segunda-feira, 3 de abril de 2017

Meu pai é rei

Meu pai é rei
Da coroa de fogo
Do além mar
Meu pai é rei
Da cara vermelha
Da pele preta
Meu pai é rei
Do alto da pedreira
De dentro da fogueira
Lá no rio ele beira
Vendo Oxum dançar
Meu pai é rei
Que chama a chuva
Que grita nas nuvens
Acompanha Oyá guerrear
Meu pai é rei
Mas não compreendeu
O modo de Obá amar

Nosso povo

Fico pensando 
Em quando fui cigano
Onde foi que ficou minha estrada.
Hoje tenho o malandro
Correndo pelas ruas
E o sangue na madrugada.
Se Seu Balança
Sabe dos trem
Não tem ninguém
Pra falar.
Salve a força da Calunga
Que o véi mora
Salve também
Toda boemia
Que Seu Zé toma.
Laroiê esse povo
Que de tanto saber
Ajuda nóis caminhar.

O menino que sabia das coisas

Eu conheci um menino que sabia das coisas. Tinha nascido homossexual, e sabia disso. Tinha nascido no lugar certo e na hora certa, e sabia disso. Tinha vivido muito em muitos lugares e aprendido tantas coisas que o fizera um calabouço de histórias e sensações diferentes, e sabia disso. Sabia, por exemplo, que as pessoas vão, um a hora ou outra e que se for muito cedo ou muito tarde é a hora delas irem.
Ele aprendeu tantas coisas interessantes e importantes, mas uma ele não conseguiu entender. No entanto, como já sabia que tudo tem seu tempo pra todo mundo, não se preocupou muito com as limitações das pessoas. Mas aprendeu, como quem vive pra aprender, que não tem responsabilidade para com as imbecialidades das pessoas. Já sabia que gente suga energia de outras gentes, e agora sabia que não tinha nada a ver com esse tipo, e que queria distância. Sabe-se pouco dele, pois sumiu no mundo, mas imagina-se que está muito mais feliz depois de mandar os babacas tomarem no cu.