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quinta-feira, 24 de novembro de 2016

Uma semana de bem


Acorda de manhã, coloca os ingredientes do suco detox dentro do liquidificador, espreguiça enquanto batia. Aos goles, liga a televisão. Aos xingamentos, se veste. Reclama em voz alta que o país não tem mais jeito, que os direitos das pessoas de bem tem sido trocados pelos bandidos, bate palmas pro juíz que predeu um mas esqueceu dez. 
Antes de chegar ao trabalho, deixa sua filha na escola de princesas e seu filho no judô. Isso às segundas, quartas e sextas. Terças e quintas amenina vai pra natação e o moleque pra aula de reforço em matemática. 
Fura o sinal de trânsito, chama de "viado" o cara que deu sinal de vida pra atravessar a faixa, de vadia a mulher que vai na velocidade proposta pela placa da avenida. Tenta encontrar uma rádio, alguma pregação cristã que o faça ter vontade de continuar a subir na empresa que trabalha.
No trabalho é aquilo todos os dias, reuniões e contatos, algumas demissões e contratações, orações entre turnos e ele vai subindo, ganhando a confiança dos patrões que o chamaram pra ir na igreja sábado. O resto da semana é igual, tirando algumas brigas com a esposa e tentativa de correção nos filhos. 
Final de semana vai almoçar na casa da prima, algumas brigas na mesa da comida, com a feminista comunista da família, que usa vermelho "só pra afrontar" e quer ler autores malditos como um tal de Paulo Freire. Toda vez a mesma coisa. Ora e pede pela alma dela e de todos ali presentes, mas dela em especial.
Domingo acorda mais tarde, gosta de ficar em casa, assiste televisão, ri das pegadinhas do Faustão, aquele quadro em que paramos pra rir das quedas de outras pessoas enquanto o apresentador milionário faz os comentários mais sem graça da televisão brasileira. Na verdade reveza entre esse e aquele no outro canal, de calouros. Chega a noite o homem de bem vai dormir, esperando recomeçar a semana. Amém.

terça-feira, 22 de novembro de 2016

Nosso caso não é entre polícia e ladrão


Falam como se preocupassem, mas não se preocupam com policiais ou com bandidos. Muito menos querem saber do que é mais ou menos grave. Só se preocupam consigo mesmos. Querem mesmo a morte de quem é diferente. 
Criaram esse fetiche nojento, pra não dizer maldito, nas fardas, nas armaduras dos heróis. Cresceram e aceitaram a não existência do papai noel ou do coelhinho da páscoa, mas nunca superaram a ideia de que não existem heróis, e procuram incessantemente por eles, criando pedestais. 
Não se preocupam com a justiça mas se sentem no direito de julgar. Só mudaram, e male male, o discurso. Mais uma vez, não é de policiais e bandidos que falam. A vida, crianças, não é uma brincadeira de polícia e ladrão. 
Se tivessem preocupados demais com o que é certo e errado, talvez saberiam dos que morrem inocentemente pra que o espetáculo genocida diário aconteça. Todo domingo, patética e preocupantemente, sentam na frente da TV pra ver o sofrimento alheio e rirem. Chamam a dor alheia de pegadinha. E se esbaldam. 
Não querem saber de polícia e bandido. Querem apontar um culpado antes que descubram a sua culpa. E disso, da culpa, estamos todos fadados. Odeiam saber que tem gente resistindo bravamente nesse jogo da vida, com muito menos. Não sei se é inveja ou que é, mas o ódio é visível, e dá pra sentir. 
Nosso caso nunca foi de polícia e ladrão.