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quarta-feira, 30 de dezembro de 2015

Pra um amigo preocupado

É normal se preocupar com os outros, né? Ou com uma situação que queremos muito que aconteça, inclusive com os outros. E nessa preocupação, a gente despende muita energia num desejo nosso pra que tudo aconteça como nós queremos. É uma mania nossa, coisas de gente mesmo, transferir nossos desejos para os outros. Isso acontece com mais frequência que eu possa imaginar. 
Eu dependo de um monte de coisa pra fazer minhas coisas, mas não quero depender de um monte de gente, no sentido sensível da palavra, pra realizar o que preciso. Não é porquê minha melhor amiga quer alguma coisa de mim que eu preciso fazer. O que as pessoas esperam de nós não necessariamente é o que queremos de nós mesmos e isso tem que deixar de ser um peso. 
Agora, um ponto potencialmente polêmico, mas espero que me entenda: você precisa parar de rezar por alguém sem que a pessoa saiba pelo quê você está rezando pra ela. Se a oração (transfira essa palavra pra sua crença, reza, mandinga, pedido...) tem um poder tanto sobre quem realiza quanto sobre a quem se destina, é muito perigoso. Você que faz sem o consentimento da pessoa pode estar interferindo sobre a liberdade dela de desejar o que quer que seja pra ela mesma. Não sejamos mais egoístas ao ponto de querermos decidir sobre os desejos de alguém. Assuma pra você mesmo que até você fica em dúvida, de vez em quando, se está com fome. 
Outro dia, por exemplo, me peguei querendo que uma amiga que mora longe estivesse aqui em Goiânia, fazendo faculdade, morando sozinha... e no meio desse desejo eu fui falar com ela e descobri que ela não queria nada disso, ela estava feliz no lugar, satisfeita com o que estava fazendo e muito completa morando com quem estava. Fiquei feliz por ela e descobri ali, naquele momento simples, que o que eu desejo para os outros, por mais certo e melhor que possa parecer, não é o que os outros querem ou esperam para si próprios. E que preciso tomar cuidados com o que eu transfiro de desejos para o outro.
Pro ano que vem e todos os outros que ainda nos esperam, que consigamos ter consciência dos nossos sonhos. E que tomemos consciência também dos sonhos dos outros e aceitemos que eles podem sim ser diferentes dos nossos. E rezemos menos e façamos mais. Uma conversa frente a frente com alguém pode ser mais eficaz que qualquer conversa com Deus. Afinal, seu problema não é com Ele. 
Cheiro!

segunda-feira, 21 de dezembro de 2015

Retrospectiva 2015 ou dois mil e quinze motivos pro ano acabar logo

Em janeiro já começaram os tiros. Fevereiro as porradas e o resto do ano foi bomba. Ano do carneiro, muita cabeçada rolou nesse dois mil e quinze. Se alguém tinha dúvidas do Apocalipse passou a sacar que é possível que role mesmo. 
Foi um ano tão esquisito que antes de acabar eu tô fazendo logo a retrospectiva. Perdão aos inventores desse calendário que seguimos mas 'dois mil de dezesseis' vai começar antes pra mim. Ontem foi um bom dia pra acabar um ano e começar outro. 
Ah, não poderia deixar de falar: se tem um trem que existiu nesse ano que passou foi a esperança. E ajudou muito. Ninguém passou ileso a 2015.

Feliz 2016!

sexta-feira, 18 de dezembro de 2015

Quando quis ser deus


Quisera eu ser deus. Aliás, queremos todos ter os poderes de deus, principalmente aquele que fica sentado num trono, sem precisar fazer muita coisa. Paradinho ali, qualquer coisa manda seus anjos e arcanjos pra resolverem pra ele. Quando a coisa fica mais séria é só estalar os dedos e os problemas ou os causadores se desfazem, deixam de existir. Fabuloso!
Quando não quero ser deus, eu queria conhecer deus. Ser amigo próximo, visitar a casa dele e comer dos prometidos manjares. Aliás, queria ser, sei lá, pai de deus. Imagina que incrível ser pai de deus. Deus, limpa a casa pra mim! Deus, me ajuda! Talvez faria até mais sentido na hora de falar "pelo amor de deus".
Agora do que eu gosto mesmo é santificar meus conhecidos. Imacular a figura daquele amigo que fala baixinho. Dar o título de grande sábio àquele que tem uma ideia sobre tudo e as compartilha no momento de um conselho. Acho que a distância entre a terra e o céu me fez querer ter deus aqui, próximo a mim. Por outro lado, acho que foi minha vontade de acreditar que existe o bem soberano divino, fazendo com que eu, sem conseguir ser tão bom assim, transfira a responsabilidade de ser deus em terra.
Coitada dessa pessoa, vamos combinar. Imagina, num lugar como esse aqui, ser deus. Que peso a se carregar. Até porquê deus não erra, portanto ela não pode cair nas graças do erro. Palavras medidas, gestos comedidos... Coitada, no momento em que foi dada a ela a possibilidade de ser gente, a gente a pôs no lugar de deus.

terça-feira, 8 de dezembro de 2015

5

A rainha do abebé, dona da beleza, da fluidez, dos estados afetivos da matéria. Mulher. Iyá. Mamãe. 
Quando fui abraçado pela senhora das águas doces, a rainha dourada, a riqueza em forma de amor, Osùn, nunca mais me senti desprotegido. Ela que é mãe, que cuida dos filhos enquanto os pais vão pra guerra, que se responsabiliza pela fecundação, que nos protege com fertilidade. 
A rainha que ganhou o coração de Sangò. Que apaga o fogo, que com calma fura a pedra, que esfria os caminhos.
É da Osùn a vaidade. Nos vales é querida, na seca é chamada, no fundo é fértil.
Ela que mata minha sede, que me limpa, que me alimenta, não permite que feitiço nem praga me derrube, não deixa que mal olhado se achegue, que choro desalenta, que riso exagere.

08/12 dia de Osùn.

segunda-feira, 7 de dezembro de 2015

Mulher

Às vezes é demorosa,
às vezes é delicada.
Às vezes é abrupta,
às vezes determinada.

As vezes que é querida,
sorri e se desmancha.
As vezes que é doida,
grita e é odiada.
Às vezes é quieta,
às vezes transtornada,
às vezes é santa,
às vezes endemoniada.
Às vezes se esconde,
outras se dá.
Muitas coisas é...
em todas sanguinária.

domingo, 6 de dezembro de 2015

Esperança

Enquanto houverem Inêses Brasis,
pretas empoderadas,
crianças viadas,
pomba-giras encarnadas,
rodas pra exu,
orixá,
boas gozadas
eu acreditarei nessa humanidade.

quarta-feira, 2 de dezembro de 2015

Trevas x Luz

Que bagunça boa. Que lembranças esquisitas, que pesadelos leves, que incríveis são as formas que o universo encontra pra fazerem coisas impregnadas nas nossas células irem embora.
Tanta coisa maluca acontecendo no mundo, e no meu mundo. Tantos corações choram agora e tantas lágrimas caem do meu coração. Uma baderna.
A energia caótica deixou tanta coisa fora do lugar. Muitas frestas reabertas e tantas trevas escorregam por elas. Em oposição, tanta luz nos segura e se assegura de que continuemos caminhando.
Apesar de tudo, as estradas parecem mal iluminadas. E nesse processo todo, o que me resta é manter o lampião aceso. Troco o gás no escuro. Não me entrego.

terça-feira, 24 de novembro de 2015

Triste

Estou triste. Não deixei de ver esperança em qualquer canto ou de cantar qualquer choro. Só fiquei triste e me dei essa possibilidade, de deixar as pálpebras caírem, o coração bater mais fraco e o estômago sentir pancadas frias.
Sempre tive medo da tristeza. Assustado, sempre corria e buscava aquele sorriso guardado capaz de cessar qualquer tempestade, capaz de fazer qualquer sol brilhar, independente das nuvens carregadas que insistem em passearem na sua frente.
Dessa vez deixei chover. E agora chove. A tristeza é sentimento que rega o coração e, como aprendi na biologia, deve nascer folhinhas verdes com tanta semente de esperança que plantei em mim.

domingo, 15 de novembro de 2015

Pra um amigo com coração partido


Quando estamos em uma relação amorosa, damos nosso coração pro outro. Intencional ou não, quando sentimos afeto, nosso coração já não é mais nosso. Isso de jeito nenhum pode ser considerado como uma falha emocional ou desastre sentimental, apesar de ver acontecer com frequência.
Nosso coração está lá, nas mãos, pés, corpo do outro, sendo cuidado de acordo com os limites do anfitrião. Às vezes machuca, ele cai, rala, mas que nem menino pequeno, levanta chorando e logo volta a correr de novo.
Nesse processo todo, quando recebemos nosso coração de volta? No término. Quando um relacionamento termina é a devolução do nosso coração. A pessoa devolve. Ele volta assim meio machucado, meio sem roupas, com pares de sapatos faltando, meio manco mas logo fica saudável de novo. E ninguém consegue parar um coração com saúde, vai doido querendo ser dado de novo.
Tem as vezes que nos devolvem subitamente. Recebemos num tranco, num susto. Quando somos traídos é uma dessas formas. Ele chega rápido, com força, retornando ao seu lugar de origem, sua casa basilar. E aí dói muito, assusta muito, requer cabeça no lugar para lidar com essa volta abrupta de um coração que foi dado com tanto cuidado e jogado de volta, sem tanto cuidado assim. 
Coração da gente é bolinha de gude em mão de criança, jogada na terra, procurando o buraco certo. Mas no meio do caminho ele bate em outros corações, se partem às vezes... e como na brincadeira, podemos mudar as regras, refazer os caminhos, furar buracos, trocar. 
E como nota final, reconheço que coração depois de dado uma vez nunca mais é o mesmo. A única coisa que mantém é o desejo de ser doado, de encontrar outro cantinho que cuide dele. Isso é coração.

sábado, 14 de novembro de 2015

Ressaca

Acordei. Com ressaca, bebi um copo de água que desceu limpando, aliviando a náusea e dor de cabeça. Não foi a cachaça passada. Aliás, essa não foi suficiente para me fazer esquecer o mundo. Pior que álcool, os noticiários acamam. Consegue sentir o cheiro de sangue? E de lama?

terça-feira, 10 de novembro de 2015

Do fogo eu vim pro fogo eles vão

Há algumas vidas atrás, os vi entrarem na modesta casa cheia de ervas penduradas. Lembro até hoje do cheiro de incenso, feitos pelas mãos de minha mãe, sendo tomado pelos gritos que ela soltou depois da bofetada que um dos seus deu em seu rosto. Urrei. Não adiantou. Vi minha mãe ser levada, a pontapés e xingamentos. Depois, não quis acreditar que aquele fogo enorme aceso no meio da praça... jogaram-na. Ela não gritou, me encontrou com o olhar e dali em diante soube que ela viraria força. Morri tempos depois, sendo chamado de filho da bruxa.
Vidas depois, vi, também no fogo, serem jogados meus livros que há tempos vinha colecionando, como se colecionam passaportes ou cartões-postais, viagens. Limitaram aquele que me salvaria das suas garras burras, meu conhecimento. Não adiantou muito, aprendi mais nos seus olhos doentios de ódio que com qualquer outro livro, afinal, a bruxa já tinha me ensinado a abrir a janela do olhar. Aprendi, inclusive, que o silêncio que me obrigavam a ter seria meu melhor companheiro. Calei.
Na última que me lembro, pensando estar salvo de seus fogos mortais, já sabia ficar calado, já sabia viver sozinho, mas nunca soube compreendê-los, senhores e senhoras intolerantes, preconceituosos, estúpidos e burros. Morri, agora, por uma arma de fogo, por não concordar com seus pensamentos. Mesmo calado sabia discordar.
Agora, senhores e senhoras, que querem meu voto de confiança, vos digo que NÃO. Nesta vida vim esperto. Calado sei balançar a cabeça discordando. Até pra chorar sei fazê-lo em silêncio. Enquanto gritam aos quatro cantos querendo atenção, aprendi a olhar e não ouvir. Aprendi, inclusive, a perceber quem são os meus e de quem eu sou. E continuo aprendendo. Doente sei usar meus matos. Ignorante sei aprender com o tempo. Atirado aprendi a me jogar.
Agora, senhoras e senhores, que sonham somente suas verdades, um aviso: do fogo que outrora me mataram nesta vida eu vim filho. É dele meu destino. Afogado não me matarão, já que da água vim companhia. E de todos os fins que me roubaram, o início que eu já tinha me acompanhou a renovação. É calados que vamos derrubá-los. É no nosso silêncio que cairão. Nosso silêncio é grito que vai ensurdecê-los. E o fogo, aquele que nos jogaram, há de julgá-los todos!

quinta-feira, 5 de novembro de 2015

Auto-Prosa sobre A Caolha

Que seria a peça, uma vez que o ator se questiona, sempre há de questionar o que lê e o que chama de teatro? 
Talvez seja o que diz o dicionário, talvez o que diz o público, talvez o que ele ache. Mas, com certeza, é o que ele ainda vai descobrir montando, ensaiando, apresentando, desmontando, repensando. O teatro pode ser tudo ao mesmo tempo, inclusive ponto de interrogação. No entanto, no seu fim, sempre será o vir a ser. É ator que vem a ser personagem, é papel que vem a ser parede, é tecido que vem a ser figurino, é ação que vem a se cena. Teatro é gente que vem a ser público, público que vem a ser sensível, sensível que vem a ser transformação. É isso que a gente quer, que tudo venha a ser transformação para um mundo que se questiona a partir de bases pré-intencionadas, não valendo de muita coisa, destilando verdades. Que são verdades se não o oposto de questionamentos? 
Qual a história que contamos?
A história do Mário, do João, da Maria, do filho da puta que já nasceu sem sorte e com vontade de morrer. Daquele desgraçado que mora debaixo da ponte, que reconhece sua vida numa latinha de refrigerante, com duas pedras de craque dentro. É a história da puta que apanha todo dia do cliente depois de levar gozada na cara e ser obrigada a engolir a porra, mesmo dizendo que não gosta. A Caolha conta a história do surdo-mudo que mora no último andar do meu prédio, marido de uma surda-muda e pai de um surdo-mudinho, que sofre preconceito de outras crianças. É disso, a peça. Não é a história de quem tem dinheiro, é a história dos fodidos no mundo, que não encontram nem um sorriso por falta  de boas lembranças.
Mas a personagem não é uma mulher caolha?
Sim. E todos esses que eu falei são também caolhos. Falta-lhes uma parte importante nos olhos sociais. Enxergam a "realidade" male male só por uma fresta. Mas a personagem da peça é uma mulher que é caolha dos olhos mesmo.
E quem é essa mulher?
É um espelho, um saco de pancadas. É uma mulher que reservando esperança, o destino devolveu-lhe o pacote errado, entregando porrada. Recebe maldições de todos os lados, é o monstro da cidade, o fantasma da casa mal-assombrada, o demônio caído. A sociedade é o que sempre foi, aquela que julga, que define o certo e o errado, o bonito e o feio, o vizinho, o que expurga, que não caga, que exorcisa. A caolha é tudo o que não queremos ser: julgados, excluídos, jogados pros cantos até sair de dentro. É o que está fora.


quarta-feira, 4 de novembro de 2015

Perder


Todos os dias a gente perde alguma coisa. Um objeto, uma pessoa, um lugar. Estamos para perder.
Já observou o quanto perdemos todos os dias? Estamos perdendo tempo, perdendo a oportunidade de um abraço, perdendo a chance de ficar caladx. Cada passo dado representa um tanto de coisas perdidas. Cada minuto passado mais outro mundo de perdas. 
Eu, por exemplo, já perdi amigos e amores pro tempo. Já perdi pessoas importantes e que eu amo pra morte. Já perdi pensamentos pra olhos. Já perdi o rumo pra bebida. Já me perdi até pra minhas próprias perdas. E, aos 25, nunca me acostumei a perder. Sempre dói de alguma forma. E observando as pessoas mais velhas ao meu redor, sou capaz de afirmar que não hei de aprender, sempre doerá, machucará e será de alguma forma incômoda a tal da perda. 
Quem nunca perdeu um dia inteiro independente do motivo? Quem nunca perdeu uma oportunidade importante? Quem nunca perdeu a chance de falar algo bonito pra alguém, só porquê não concordava com essa pessoa? Sempre vamos perder. E sempre vamos pertencer ao outro. E sempre vamos nos perder nos outros. Aí, penso eu, que está o segredo: nos perdermos.
Na tentativa de se encontrar, vi pessoas perdendo a vida. Querendo ganhar dinheiro, perderem o tempo. Querendo ganhar fama, perderem saúde. Querendo ganhar confiança, perderem o amor. E assim, perde-se a leveza, perde a paz, perde o sorriso.
De qualquer forma, perder também é natural. Só não o é do jeito que costuma acontecer. Aí choramos, sentimos saudade, deixamos passar e percebemos que no outro dia vou levantar pra continuar perdendo.
E se for pra perder, que seja o medo, os antigos hábitos, as amarras. O resto... vamos perder de todo jeito mesmo.

sexta-feira, 23 de outubro de 2015

O filho do velho

Abriu-se a porta do inferno.
Os anjos estão a solta!
Cavaleiros do apocalipse passam, montados em seus dragões, atrás dos demônios.
Sinto um arrepio esquisito.
Meu corpo não responde aos meus atos.
Me sinto velho, ando devagar.
Ao olhar pro lado,
a escuridão clareava.
Uma roda se fez a minha volta,
e com os olhos semicerrados,
percebia que estavam ali por minha causa.
Que querem com esse velho?,
pensava eu.
Começaram a chegar, cada vez mais gente.
O primeiro carregava um falo ENORME.
O segundo uma espada gigante.
O terceiro, quando apeou de seu cavalo,
vi um arco e flecha.
De repente eu não sei direito, chegou um coberto de palhas,
junto a outro coberto de folhas e uma cobra.
Fez-se um arco-íris.
Começaram a chegar as mulheres mais belas que já vi.
Foram chegando.
Alguém gritou Obá nixé Kaô e logo um homem, lindo, apareceu.
Ele carregava dois machados nas mãos.
Começaram a dançar! Em volta de mim.
Não existia mais escuridão, nem maldição.
Gritaram "epi epi babá" e da minha boca saiu um som de pombo.
Estava em meu corpo Oxalá, o mais velho, a luz,
pai de todas as cabeças, senhor da misericórdia.
Era sexta-feira.

Recado

Recebi um recado. Não lembro de onde veio, só que chegou como um tapa na cara. Ou um cuspe no meio da testa. Ou, quando criança, uma carícia por dentro das calças. Um recado que machuca, daqueles que assusta e deixa marcas psicológicas infelizes.
Depois que acordei, recebi um recado. Não foi um bilhete comum. Foi destes que os professores mandam para os pais gays referindo-se a uma mãe, daquelas pichações dizendo que Jesus está voltando, que a porta estreita é a melhor. Foi igual aquele bilhete que recebi aos 6 anos, escrito com letra infantil "bichinha".
O recado tem cheiro de sangue, aquele mesmo que saiu da minha boca quando me jogaram no chão me acusando de ser afeminado. Tem gosto salgado, aquele que eu senti quando chorei ao ver minha irmã ser violentada dentro do coletivo e ninguém disse nada.
Nas entrelinhas, muito claramente, consigo ver meu pai dizendo que nunca vai me aceitar, quando disse que sou gay. Que coisa, não? Parece muito também quando eu fui chamado de filho do demônio quando passava na rua vestido de branco e com meu delogun porquê era sexta-feira, dia de Oxalá.
Sabe aquele recado triste, doloroso? O recebi hoje. Novamente!

quinta-feira, 22 de outubro de 2015

Títulos para a atualidade


Não durma.
Os otimistas querem ir embora desse lugar.
Estão querendo acabar com a gente.
Segura que o baque é forte.
E há de piorar.
Aqueles, quem não passarão?
De que vive o homem? Que homem?
Num piscar de olhos decidem seu futuro.
Tem gente decidindo pela gente.
Já pode ir embora?
Não durma.

sexta-feira, 16 de outubro de 2015

O velho do pano branco

Quando é fé, 
apareceu no alto da ladeira, 
como numa miragem, 
aquele velho abaixado todo de branco. 
A travessa toda parou.
Joguem canjica,
representemos o casamento da luz com a Terra.
"A bênção", gritavam.
E ele, batia sua bengala prateada.
Todos vinham ver o velho Obatalá passar.

quarta-feira, 14 de outubro de 2015

Quarta-feira

Na quarta-feira, 
costumava apanhar quiabo no pé, 
refogar no dendê 
temperado com camarão e cebola. 
Servia bem quente, 
dentro da gamela
feita da madeira mais inflamável.
Na porta da frente,
folha de dendezeiro desfiada,
não era qualquer um que entrava.
Pedia licença,
também em saudação,
às senhoras do vento e das águas revoltosas.
Porém na quarta servia o Rei,
aquele em que a coroa flamejante
protege sua cabeça e seus passos,
senhor da sua vida
e do seu destino.
No meio da semana,
a senhora mirrada da casa ao lado,
"Kabiecile",
gritava,
e logo um brado se escutava.
Como menino curioso,
por cima do muro eu olhava:
Pedra rolava e o fogo dançava!

segunda-feira, 12 de outubro de 2015

O menino que cresceu

Um dia, quando o menino acordou, já era grande. Não muito, mas o suficiente para não conseguir subir no vão da porta com liberdade ou pedir balinha na venda sem causar constrangimento nos seus pais pela falta de dinheiro. Sem entender nada, o menino continuou seu caminho e descobriu que não cabia mais no berço, nem nos colos que antes o deitavam. Agora era necessário fazer sua própria comida, andar pelas próprias pernas e controlar suas palavras, que antes faziam as pessoas chamarem-no de "gracinha" e hoje de "ridículo". Continuando e passando os dias, o menino foi se tornando cada vez mais velho e percebeu que aquilo devia ser o famoso crescer.O menino aprendeu, crescendo, que quando o perguntavam o que ele seria quando crescesse não condiziria necessariamente com o que ele realmente se tornaria. Viu que se preocuparia com coisas bobas considerando-as importantes. E, pouco a pouco, foi parando de achar importantes aquelas coisas que os adultos chamavam de bobas.Um dia, se levantando de súbito de um pesadelo, sentou-se na cama e pôs-se a pensar: quando menino o menino não chamava nada de pesadelo, eram sonhos ruins. Não reclamava do calor pois conhecia a sombra das árvores. E não tinha medo do mundo. Quis voltar a ser criança. Na tentativa, percebeu que tinham coisas boas em ter virado um menino adulto (como resolveu se chamar), como perder o medo de escuro e andar sozinho na rua qualquer hora do dia. Foi aí que o menino reencontrou a criança que existia dentro dele. E nesse momento, viu-se como um super-herói. Conseguia ter o brilho nos olhos dos pequenos e um abraço dos grandes. A vida que passava rápido agora passava no tempo certo. Quando fosse 'menino adulto velho', o agora 'menino adulto' tinha a certeza de um adulto e a esperança de uma criança que outro mundo o apareceria. Esperou como alguém que só espera. Não tinha mais medo de envelhecer. Até porque envelhecer pro menino significa crescer. E quanto mais velho maior!Feliz dia das crianças prxs meninxs, meninxs adultxs e meninxs velhxs!

segunda-feira, 5 de outubro de 2015

Ilustrações

Cheio de histórias mal contadas no meio, como quem perdeu várias mães que lhe liam os livros durante a vida, o menino se vê encontrando formas de costurar, retalho por retalho o que sobrou. O próximo amor do menino, esse sim há de ser o retalho. Se não, ainda falta um tanto para completar a calça. Enquanto isso, revê os retratos, como quem vê as ilustrações. Hoje o menino, não tendo quem lê para ele, vive de ler as figuras. Elas sorriem e isso já o basta para abrir-lhe um frio gostoso nas memórias.

quarta-feira, 30 de setembro de 2015

Orixá


Todas as vezes que você se ajoelha antes de fazer sua prece, Exu aparece pra te ligar ao seu Deus. 
Sempre que o aço é forjado para que suas cruzes sejam feitas e seus templos erguidos, Ogum se faz presente. 
As vezes que encontra um pé de caju ou manga ou jabuticaba carregado, é Oxóssi. 
Sempre que está doente e toma aquele chá de boldo ou hortelã, esperando a melhora, são os irmãos Omolu e Ossain que se encantam para te ajudar. 
Vai me dizer que nunca se encantou ou sentiu a vida ao ver o arco-íris Oxumarê?
Sempre que você for batizado, é Oxum que representará a fertilidade de seu Deus.
Nesse calor, a brisa Oyá que ameniza um pouco a situação toda.
Aquele sorriso que você solta quando vê ou ganha algo que queria muito e sente o frio na barriga, são os Ibejis que se fazem presentes. 
Todas as vezes que acende sua vela, antes das suas orações ou quando acaba a energia, é Xangô que, com sua luz, sendo vida, afasta as más energias a sua volta. 
Se esquece da calma que sente ao ver as anáguas de Iemanjá na areia? Ou da paz que é estar em um lugar alto, silencioso e bem iluminado? Ali é Oxalá! 
Orixá é natureza. É energia e é somente aí que está a magia. Não precisa chamá-los pelo nome para invocá-los, eles são e estão! A vida é Orixá. E Orixá é vida!

segunda-feira, 31 de agosto de 2015

Revolução do silêncio

Só sei que está tudo meio esbranquiçado. Algumas bênçãos tampadas pelos socos e tiros dados a torto e a direita. Só sei que está todo mundo confuso, colocando a culpa em agosto, em outros gostos. Estamos todos, num movimento aparentemente infinito, de nos certificar que nossa voz, gritada, há de sobressair por aí. Estamos também tão falantes quanto confusos. Se calar não é opção, por medo de parecer ficar em cima do muro. Mas o silêncio, esse sim há de nos mostrar caminhos coletivos. Os gritos nos unem em facções nem um pouco igualitárias. Revolução também se faz com o olhar, em silêncio.

quarta-feira, 19 de agosto de 2015

Parar. Quando devemos parar? Quando deixa as coisas irem de acordo com o jeito que elas querem? As coisas tem vontade própria ou destino é uma construção? Tentando entender o formato das coisas.

terça-feira, 11 de agosto de 2015

Coisas para se despedir

Quando se pretende desconstruir uma ação não aprovada pelo coração, deve-se repetir o mantra da despedida. Mantra enquanto desejo, permite, a partir de um infinito esforço, que tudo vá embora. Reflete-se até a próxima esquina, até a próxima música ou até a próxima transa. Depois estima-se os restos, deixando fluir.
Despedir pode ser sempre doloroso. Pessoas se definham a cada adeus dito ou não dito. Outras se divertem e até procuram situações que as façam ir ou que façam com que coisas vão. E são essas que me ganham, que me fazem reconhecer em mim. Sou despedida, adeus. Entregue a Deus sempre quero ir.

quarta-feira, 29 de julho de 2015

ANJO


adj. pess. 1. Gente viva que sem falar ou fazer nada específico ou proposital, tem o poder de colocar nossas energias no eixo, aumentar nossos desejos de vida, aconselhar com o olhar e compreender nossas loucuras.
poét. 2. Espectro de luz e consciência que nos guiam pelos caminhos escuros. Tem a missão de nos relembrar, todos os dias, do fim do túnel. Ou não, estão para mostrar exatamente o contrário: que viver no escuro não significa ser trevas.

domingo, 26 de julho de 2015

Cafona #1

Eu chego em casa e meu amor havia feito brigadeiro.
No telefone, quando longe, nos chamamos por apelidos fofos.
Quando viajo sem ela, a vejo em coisas do tipo completamente cotidianas.
Me vejo nela. Por isso meu coração dói enquanto ouço músicas na rádio.
Não nos encontramos há algum tempo. Terminamos por bobeira, como todo relacionamento em que há mais amor que dúvida. Uma dúvida escondida é maior que uma dívida bancária ou mentira escancarada. Um dia ela saiu de baixo do tapete e engoliu nós dois. Ali mesmo nossa estrada se dividiu. Passei um tempo, uma semana, para ser mais exato, ouvindo a mesma música. Não era para esquecê-la, pelo contrário, queria que ela continuasse ali, ainda. E assim ela o fez, como um fantasma, se materializava em minhas lágrimas.

sábado, 13 de junho de 2015

A paz do grilo

Quando deitei,
Fiquei em dúvida
Se ouvia os carros
Ou a televisão do vizinho.
Escutei o grilo e foquei.

terça-feira, 2 de junho de 2015

O que faz a gente

Nós somos feitos
cinquenta por cento
de água do mar e luz.
Cinquenta por cento de outros
e nós mesmos.
Mas cem por cento de nós
é que decide
o que fazer
com o que
faz a gente.

sábado, 30 de maio de 2015

icCapaz

Vocês que não se deixam cair
nos abismos do sonho
e não encontram
as enormes ilhas da possibilidade
à deriva no mar da insegurança,
não sabem o que é realizar
qualquer desejo que seja.
Não entendem a grandeza
da esperança
ou a força que se ganha
em olhar em volta
enquanto está em queda.

sexta-feira, 17 de abril de 2015

Desejos

Que o amor, aquele mais puro sentimento, que não dá brecha pra nenhuma coisa que não seja luz, se apodere do seu coração. Que todo e qualquer sentimento de sofridão seja nada mais nada menos que ventanias, que balançam mas não derrubam. Que seus caminhos sejam de terra, pura (e puro), com pedras que massageiem seus pés, que possa vez em sempre flutuar, sempre que o passo ameaçar qualquer tropeço! E que sua cabeça seja seu guia por essas bandas terrestres e sua ligação pelas bandas universais, intergalácticas. Se cuide!

segunda-feira, 6 de abril de 2015

Parou e disse o quanto o universo era bom essa fala me incomodaria um pouco tempo atrás parece improvável ouvir isso de qualquer um que por aqui habita mas hoje, depois de algum tempo de assimilação dessa dissonante forma de ser, falar, pensar e flutuar sorri e concordei me felicitei com tal afirmação deixei de lado os porém afinal, tristeza todos tem eu tenho sei que ele também mas é só esfregar ela deixar bem limpinha que vira amor vira alegria tristeza é a alma mal lavada é por isso que a mãe das águas habita meu ser e hoje eu deixei seus rios seguirem.

João Pedro Moura

quinta-feira, 26 de março de 2015

Amigos imaginários

adj. 1. amigos que mal se vêem mas que carregam consigo grande amor. Tendem a ser livres e a gostar da liberdade. Aparecem de vez em quando, ao que der.
2. Costumam deixar muita saudade. E a carregar muita saudade também. Sabem lidar com o sentimento de perda, fazendo-o ao contrário. "Sentir saudade é falar que ama com outras palavras", eles dizem.
3. Ao que parece, sempre respondem outros amigos imaginários.
4. São entregues ao universo e aos encontros cósmicos. Acreditam que, se nunca mais ver seu outro amigo não quer dizer que o amor ou a amizade tenham acabado. 

terça-feira, 17 de março de 2015

atravêssado

aí cê óia prum lado, óia pro outro e atravessa. 
joga o corpo na avenida, 
dum lado pro outro e, no mêi,
prefere fazê diferente: 
não mais andá de lado, 
andá pá frente.

terça-feira, 3 de março de 2015

Laroyê Padilha!




Quando minha mulher dança
além do perfume de jasmim,
deixa a leveza contrária
das profundezas de onde vem.

sábado, 21 de fevereiro de 2015

AMOR BASTANTE - Paulo Leminski

quando eu vi você
tive uma ideia brilhante
foi como se eu olhasse
de dentro de um diamante
e meu olho ganhasse
mil faces num só instante

basta um instante
e você tem amor bastante

#22

Eu gosto de olhos que se abrem no horizonte, que dilatam as pupilas ao ver-se em estradas diferentes. Gosto dos corações que se jogam nos rios, que tremem de medo e mesmo assim não param de amar. Gosto dos estômagos que, mesmo cheios de frio, não deixam de agregar ainda mais a sensação de estar vivo. Gosto dos corpos que estão, que são modulados e moduladores de experiência. Estou apaixonado.

quarta-feira, 4 de fevereiro de 2015

Uma experiência

Tem sido um exercício, mais que diário. Hora a hora paro, penso, reflito, rezo. Aproveito pra pedir o deus que vive em mim e que me faz continuar. Conversar, refletir, pedir paciência e abertura para enxergar o outro que está perto não é tarefa fácil. Uma coisa é certa: a vontade é menor que o desejo. Se trabalho meu desejo de continuar no caminho do amor e da paz, a vontade por qualquer outra coisa será insignificante, até que desapareça. Meditação não precisa de regras, seu corpo sabe como desenvolver-se em deus.

sábado, 3 de janeiro de 2015

Chegaram

Chegaram todas aquelas pessoas que queriam estar no lugar mais alto do pódio, educadas, ou melhor, adestradas por pessoas que queriam mas não conseguiram por medo da tentativa de chegar até lá. Na sala de aula, desde crianças, queriam correr pra todo lado mas não os deixaram, botaram todos eles sentados em fila, um atrás do outro, onde o da frente era o melhor pois se adequava perfeitamente ao sistema imposto e o último da fila, coitado, era aquela criatura medonha. Os vestidos de preto, a que pegava todo mundo e aqueles que, de uma forma ou de outra, queria estar ali pra se fazer de rebelde, tudo na última carteira da classe. Depois que cresceram, esse povo foi colocado, todos, seguindo a linha do sistema, a não se olharem "porquê elx pode tirar sua vaga". Aprenderam, desde pequenos, que são ameaças um pra o outro. Esses que chegaram não sabem pra onde ir por medo, vão aos analistas, aos psicólogos e aos botecos, chorar suas mágoas por não conseguirem amar, ou por serem cheios de traumas. De onde vem o trauma? Tentam, buscam, vasculham - pelo menos alguns ainda o fazem - esperneiam, lotam igrejas, ruas e terreiros em busca da resposta divina, já que acima do quadro negro sempre existiu o crucifixo. Não entenderam, não por falta de saber, mas porquê sabem demais, nenhuma mensagem de amor que já lhes falaram. A verdade de deus, pra esses que chegaram, não está aquém de todas as verdades que fizeram-nos ter. Aliás, os convenceram de que são donos da verdadeira sabedoria. Mal sabem eles que o que chamam de verdade, aquilo que têm tanta certeza, são apenas resenhas, algumas mal escritas, de fantasias assumidas. Se deus pede pra que tirem um recesso... "Não senhor, hoje não. Precisamos ter disciplina". Disciplina de cú é rôla, e xingar na mesma linha em que se fala de deus é menos respeitoso que o que continuam fazendo com aqueles que chegaram. E não param nunca de chegar.