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quinta-feira, 5 de novembro de 2015

Auto-Prosa sobre A Caolha

Que seria a peça, uma vez que o ator se questiona, sempre há de questionar o que lê e o que chama de teatro? 
Talvez seja o que diz o dicionário, talvez o que diz o público, talvez o que ele ache. Mas, com certeza, é o que ele ainda vai descobrir montando, ensaiando, apresentando, desmontando, repensando. O teatro pode ser tudo ao mesmo tempo, inclusive ponto de interrogação. No entanto, no seu fim, sempre será o vir a ser. É ator que vem a ser personagem, é papel que vem a ser parede, é tecido que vem a ser figurino, é ação que vem a se cena. Teatro é gente que vem a ser público, público que vem a ser sensível, sensível que vem a ser transformação. É isso que a gente quer, que tudo venha a ser transformação para um mundo que se questiona a partir de bases pré-intencionadas, não valendo de muita coisa, destilando verdades. Que são verdades se não o oposto de questionamentos? 
Qual a história que contamos?
A história do Mário, do João, da Maria, do filho da puta que já nasceu sem sorte e com vontade de morrer. Daquele desgraçado que mora debaixo da ponte, que reconhece sua vida numa latinha de refrigerante, com duas pedras de craque dentro. É a história da puta que apanha todo dia do cliente depois de levar gozada na cara e ser obrigada a engolir a porra, mesmo dizendo que não gosta. A Caolha conta a história do surdo-mudo que mora no último andar do meu prédio, marido de uma surda-muda e pai de um surdo-mudinho, que sofre preconceito de outras crianças. É disso, a peça. Não é a história de quem tem dinheiro, é a história dos fodidos no mundo, que não encontram nem um sorriso por falta  de boas lembranças.
Mas a personagem não é uma mulher caolha?
Sim. E todos esses que eu falei são também caolhos. Falta-lhes uma parte importante nos olhos sociais. Enxergam a "realidade" male male só por uma fresta. Mas a personagem da peça é uma mulher que é caolha dos olhos mesmo.
E quem é essa mulher?
É um espelho, um saco de pancadas. É uma mulher que reservando esperança, o destino devolveu-lhe o pacote errado, entregando porrada. Recebe maldições de todos os lados, é o monstro da cidade, o fantasma da casa mal-assombrada, o demônio caído. A sociedade é o que sempre foi, aquela que julga, que define o certo e o errado, o bonito e o feio, o vizinho, o que expurga, que não caga, que exorcisa. A caolha é tudo o que não queremos ser: julgados, excluídos, jogados pros cantos até sair de dentro. É o que está fora.


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