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sábado, 11 de novembro de 2023

Jeito

Desculpa meu jeito. É que de onde eu venho. Será que importa mesmo pra você de onde eu venho? É que não consigo me explicar, se não considerar os caminhos de onde vim. Foi lá, naquele Planalto Central, que me percebi calango. Eu sou a terra vermelha que mancha roupa clara. Sou a areia fina que me lembra o mar que meus avós nem meus pais conheceram. Eu sou as pedras e sou também a água gelada que verte delas. Eu sou a humildade do cabreiro. E sou o deboche da puta do puteiro mais vagabundo. Eu sou o sertanejo, o tempo seco, a pele rasgada no duro pau retorcido. Eu sou o próprio pau retorcido. Eu rio de tudo mas não rio pra você. Rio por mim mesmo. Eu sou o deboche do caipira diante das certezas de vocês. Eu sou do meio do país. E recebo a herança da violência, das correntes que passam e derrubam tudo. Metade verde de soja, metade marrom de mato. Eu sou uma vaca mojada. Eu sou um perdido do mundo. Não levo seu desaforo comigo, te cuspo de volta em um olhar cínico, naturalmente. Eu sou latino-americano, brasileiro, tocantinense e goiano. Eu sou uma bichinha que sabia muito bem o que é liberdade. Eu sou a própria corrente que arrebenta suas impressões mais sinceras, que te confunde, que te mistura, que te encanta. Eu sou o próprio rio Araguaia, que banha tantas terras e abençoa. E mata. Eu sou o perigo das águas fartas que afogam e sou o perigo da pouca água que não sacia. Eu sou Marília Mendonça, sou a viola dos antigos, sou o batuque de um tambor aprendido fora e ressoado dentro de um casco de árvore frondosa. Por favor, desculpa meu jeito. 

segunda-feira, 11 de julho de 2022

A cara do futuro

 O futuro virá

de dentro de um pote de barro

servido em canecas de ágate

por mãos iluminadas de sol e ouro.

O futuro será

de dentro de cabaças bem cuidadas

no fundo do rio mais antigo

pelas mãos mais iluminadas de sol e ouro.

O futuro terá cara do passado mais longínquo,

do presente mais eperado,

da velha. O futuro terá cara da velha!

terça-feira, 29 de setembro de 2020

caminhar

O filho de santo ouviu na cozinha que serve-se canjica branca pra oxalá. E na ânsia de servir seu santo, foi embora pra casa com aquilo na cabeça. 
Foi no mercado, comprou a canjica, cozinhou. Percebeu que não tava maciinha, mas serviu assim mesmo. Tirou da panela de pressão, já colocou logo no prato, saindo fumaça, botou no chão, acendeu a vela e bateu paó. 
Deitou feliz, aquela noite. Acordou no outro dia com a impressão de que não tava calmo como pensou que estaria. E foi piorando até o final do dia. 
Na sexta-feira seguinte foi dar satisfação ao ilê, e contou pra mokota da casa o que tinha acontecido. Ela riu. Fez um banho de boldo e folha da costa, deu no filho e o chamou na cozinha. Ele encostado, sem entender o que tava acontecendo, ela disse, "você ouviu, agora veja". Pegou a canjica, catou os grãos, colocou na panela de pressão e levou ao fogo. No tempo de tirar, que ela reconhecia pelo cheiro, abriu a panela, lavou e separou o omitorô e colocou no prato branco. O filho, esperando já impaciente enquanto lavava as louças e via a velha fazer tudo na calma, perguntou quando serviriam. Ela, na sabedoria, lhe contou um itãn que dizia sobre a temperatura de Oxalá. E quando percebeu que a comida já havia esfriado, pegou e o chamou até o quarto de santo, serviu a comida enquanto o filho chorava emocionado e arrepiado. Tudo em silêncio. Quando ela saiu, fechou a porta e lhe disse:
"O tempo entre ouvir, ver e fazer é diferente. Afine os dois primeiros e por fim suas mãos estarão preparadas  pra trabalhar da melhor forma possível. Isso vale aqui e em todo lugar".
O filho de santo ouviu.

quinta-feira, 3 de setembro de 2020

Ansioso

 Andando com os pé semi rachado. 

Não à tôa, gosto de olhar a paisagem por onde ando. As pedras ou buracos do caminho às veiz passa desapercebidas. Olho de passarim, que parece que olha só pra cima. Mas se fosse de passarim mesmo, olharia pro chão, que é de onde vem a presa e o predador. 

Se vi raíz, se vi folha, se vi fruta, rastejar na areia me ensinou olhar pra cima, me necessitou subir em árvores. 

Foi quando te vi. E vendo e vendo, e olhando e olhando e sentindo todas as saudades do mundo, e a ansiedade principesca do tempo, aquela que é retardada pelo querer e não a passada do matuto, aquela que o desejo carrega o observar.

Como caminha o romântico, onde anda o livre no ser e estar sentir alguém. Poderia ser uma dúvida, imatura e cruel, de não ser e estar. 

Hoje olhei a cidade e parecia mandinga de nego sabedor. Sabe? E parecia rodada de saia de pombagira laçadora. O sol queimava e mesmo assim, andavam da rua o povo. Senti você tão perto e onde você tá não era distante. Éramos. Era contigo.

Minha juventude, daquela qual nunca saí, mesmo com as dúvidas que sinto depois de fechar o terceiro ciclo. E quem conta essas coisas, gente? 

Consigo imaginar coisas com você. E trens. E quereres ocultos aparecem no espelho. Eu quero. E se eu duvidar desse querer só um pouquinho, ele já me mostra, todas as malditas vezes, que quem está errado sou eu, não o desejo. E logo tudo passa, e os medos se esvaem, e água rola de novo, era uma pedra no meio da água. Peixe que nada. Cobra.

E ouvir o tambor, que me liga em mim, me liga a você. Uma força que existe e que sobe. Orgulho que sinto de ser parte dos seus passos. E belo é você que dança nas águas que eu nado. E de esquentar com óleo de dendê a pedra que eu deito.

Nós somos outono. E verão. E primavera todo dia que te vejo com os dente de fora. E inverno, só pra entender que o fogo antes de qualquer coisa, faz o mundo. E me faz em bracinhos de abraço, e peito de descanso, e corpo de lar.

Hoje vou triscar em seus ancestrais. E isso já faz de mim aquilo que sou. Com o passado temos o olho, as mãos presente e futuro todo passo que a gente dá pra sair de onde não deveríamos estar. Se tudo passa, que passemos pelo tudo sendo nós e juntim, Que eu te amo muito e desejo. 



sábado, 22 de agosto de 2020

Como pode?

Goiânia, 22 de agosto de 2020

Amor, 

Venho pensado, sem querer mas querendo, como fala de desenho animado, em "como pode?".
Como pode o papaléguas correr tanto do coiote. Como pode o gato correr tanto atrás do rato. Como pode?
Passa-se a vida inteira pra talvez perceber que as corridas tavam tortas e os caminhos trocados. Como pode?
Tenho a sensação que, sem você, seria eu assim no mundo, errante. Como pode?
Te amo muito.

Do seu,
Allanzim

quinta-feira, 23 de janeiro de 2020

Há tempos não passava por aqui. Já não sentia tanto o medo do desejo idealizado. Falava tanto em desejos que desaprendi a desejar. Pensei absurdamente em, de uma forma ou de outra, explicar o que sentia que esqueci o próprio sentimento. Como um músculo que não perdera os movimentos, no entanto é incapaz de se mover.

domingo, 12 de maio de 2019

Brisa

Eu amo tanto meu óculos preto q até esqueci do oto q sumiu apesar de tá falano nele agora lembrei bosta kkkk tô zuano kkkkkkkkkkkkkkkk . Kkk

terça-feira, 7 de maio de 2019

Rosa Caveira

Se tem pó que margeia o osso do defunto, sopra o vento da roseira, forte como uma esteira.
Espaço de lunação, retrato de fortaleza, a luz que brilha tanto vem de sua caveira.
Olha que sacode o pó que lá vem Rosa Caveira, mulher de 21 punhais e que é dona da porteira.

Ela é dona da calunga, da grande a pequena
De todo aquela terra ela é sua primeira.
Salve Rosa Caveira,
Que da lua tudo sabe
Na profundeza dos segredos
É com ela que se ajeita.

Senhora de tudo saber
Da força que usar
Do momento de agir
Da sagacidade de existir.
Quanto mais profundo é o poço
Mais difícil de escolher
Se a luz é uma rosa
Pra iluminar minha caveira
Ela usa de espelho
Sua própria beleza.

Ninguém fica sobre o pó
De dona Rosa Caveira
A Senhora da calunga
Tem sabedoria das estrelas.

quarta-feira, 24 de abril de 2019

Baseado na bazuca

Baseado na bazuca
Solta a fumaça
Da boca pro nariz
Prensa no braço
Onda bélica
Que exploda o mundo
De células amorosas
Que morram todas as outras.
Contradição?

terça-feira, 11 de dezembro de 2018

Base

Desaprendi a sentir
A diferença entre ser
E sentir a sentença.

Dois machados batem
Na porta na frente
Da fronte.

Inescrupuloso sentido
Surge no inconsciente
A resposta para o caminho.

sábado, 6 de outubro de 2018

ode a onda

arrebentado em pedras beiradas o mar, cheguei a sangue e carne aberta na aldeia. onde estive para merecer tamanho castigo? corre, corre, corre, menino que o lobo não tem medo das orações que fezes, nem do tamanho do seu deus, o lobo vem c0me-lo, vem arrebata-lo as paredes construidas, ditas naturais, dos corpos. água do mar, em toda sua força, bate em parede de pedras. forma-se uma tempestade. a água do mar se torna agressiva. a pedra, estática, é doentia.

terça-feira, 10 de abril de 2018

Da outra vez

Tudo parecia um filme
Não conseguia distinguir realidade 
E a ficção tomou conta da percepção 
Um diálogo cênico 
Um contato truncado 
Acabou com o meu desejo de desejos.
Fiquei aberto 
Abri feridas
Sujei meu nome
Perdi o amor da minha vida. 
Atirado sobre o asfalto
Da melhor cidade da América do Sul 
Entre os corredores da instituição falida,
Não de afeto,
Perdido 
Só que cego em tiroteio
Alagado.
Abrem-se espaços 
O peito que seja atirado
Acertado com orgulho 
Que baixe a cabeça,
Tudo em ordem.

Foi

De algum momento,
tenho a impressão do gozo puro,
aquela sensação de transe.
Ritualisticamente profano.
De algum ponto,
tenho a lembrança de um carinho arrebatador,
muito mais que fraterno.
De nós faço essa síntese.
De mim, agora,
me acabo em mim mesmo.
É o fim do caminho.
É a pausa.
É a pedra de Drumond.
Pra ser, quiçá,
o passarinho de Bandeira.

segunda-feira, 18 de dezembro de 2017

S.E.T.E.

I.

Era noite. Um corredor, uma santa, umas portas e vários espíritos. As paredes falavam. Vazio. Duas noites depois meu avô, pai de minha mãe, partia dessa vida. Seu corpo deixava o hospital, sem alma. Disparador para se pensar no que ando fazendo nesse bendito lugar.

II.

Entrei naquele elevador como quem entra num foguete. Gozaria a noite inteira, se deus permitisse. No mínimo beijaria aquela boca maravilhosa. Só conversamos, até o sol começar a apontar e eu dizer que queria dormir na minha cama. Vim embora. Dois dias depois, aí sim, gozei o encontro da paixão. 

III.

Pressionado como quem deita em areia movediça, o espetáculo não estava pronto mas as cortinas se abrindo, a qualquer momento. Coragem é um aprendizado constante de luta com o medo. Inegavelmente ela aparece. Mas a roda da fortuna não deixa de rodar. Consta.

IV.

Mudança.

V.

Era um céu tão azul, um mar tão lindo, uma cerveja tão gelada e uma distância tão safada. Meu coração doía. Nem parecia o Rio, nem parecia eu.

VI.

Lar.

VII.

No tempo de um Lorenzo. Sete pontos pra trocar de pele. Sete tópicos pra marcar o tempo. Sete ponteiros do relógio da vida. Sete meses. Sete pontas. Sete forças angelicais. Sete sustos demoníacos. No sete roda o jogo, passa o susto, toma o sopro. No sete volta a andar.

sexta-feira, 24 de novembro de 2017

Conselhos

Te assegure no presente, que o passado já virou cinza e o futuro éter.
Te assegure no lugar que está, que o próximo passo está perdido.
Te assegure na sua infelicidade do agora,
naquela pequena parcela que te resta de sentir.
Sorria da desgraça encabeçada pela sua própria testa,
ou chore a culpa das estrelas.
Não espere pétalas quando esquecera de plantar a semente,
não espere vida onde cultuara a morte,
não espere luz na sala que você se encheu de cinzas.

Não se perca no toque,
que a pele alheia desbotara em suas mãos.
Não se demore no olhar,
que a distância vista se mostrará maior.
Não se encha de esperança,
que o amor acabou.

Só sobrou medo e dor.
E vontade de ajeitar. E medo e dor.
E vontade de voltar. E medo e dor.
E a vida continuando.



quinta-feira, 9 de novembro de 2017

Ao afeto

Tudo que vem fica. E depois, haja dança pra botar tanta coisa alheia pra fora. E depois, haja tempo pra autoresdescoberta.
A vida inteirinha, até hoje, pra saber possível negar o afeto. E o não afeto. E o quase feto. E devo. Me sinto Moisés, abrindo o mar. Cada um sabe o tanto de água que consegue manipular. Ou sabe até que ponto deixar-se afundar.
As pessoas não são inocentes.

quarta-feira, 8 de novembro de 2017

animalia

Olhou pro relógio. Correu tempo, correu água do olhos, córrego passou, molhou os cílios, salgou léguas, saltou ondas, mergulhou profundo. "Esse tempo não é meu", esbravejou.
Como vaca, volta todo dia pro matadouro, pra fila do banco, pra fila do emprego, pra fila do supermercado. "Fila é a coisa mais democrática que posso ver, não escolhe lugar, está em tudo", pensou. Fila pra cagar, pra banhar, pra comprar, pra pagar.
Empurrado, amassado, cansado, atolado de lama, afogado, não pára o relógio. "Cato mamona, não consigo andar tão rápido", assumiu. Continua, abre caminho, desce a luz no fim do túnel, sobe pro fim do poço.

terça-feira, 3 de outubro de 2017

Absurdo para se ler em sotaque português

Há um tempo escondido, com o corpinho soterrado de pequenas pedras e areias, como se os grãos de areia não fossem pequenas pedras. Sorria todas as vezes que lhe apareciam na mente esses jogos de pontos de vista. Talvez fosse seu joguinho predileto.
Desconfiado, olhou pros lados, afinal, os predadores estão pra todo canto tentando parar o calanguear dos bichinhos. Abriu um sorriso e sentiu o sol quente lhe batendo a cara e costas. Balançou o rabo nadando na areia, perninhas rápidas. 
Não é que encontrou, irremediavelmente, um bocão a frente?! Não deu tempo do desvio, foi escorregadio, o calango direto pra garganta do bichão. Imaginou a gu-ela um escorregador. Até hoje calangueia na barriga da baleia.

sexta-feira, 8 de setembro de 2017

O ano que não choveu

Sempre, desde que se entendera por gente, via no dia de seu aniversário, uma torrencial queda de água do céu. Lembra de um ano que lhe pegou de surpresa, acompanhada de um arco-íris, na rua.
Diziam que era presente, coincidência, recado ou aviso do céu. Tinha quem colocasse sagrado e profano no mesmo balaio pra falar daquela chuva. Eram os comentários que ele mais gostava, aliás.
Mas esse ano não choveu. Não caiu um pingo d'água, nem nuvem tinha lá em cima. Tudo seco. Nem suor lhe desceu a testa. Foi então que viu-se cerrado. Seco, esfumaçado, com marcas cinza na pele, feitas pelas unhas desidratadas. A água era interna, discreta. De tanto matutar, escolheu a resposta que mais lhe acomodara o coração quanto o atraso da chuva. É do fogo sua vida e seu renascimento.
Dá voltas no quarteirão a pele que deixa agora para trás, mais leve que quando o céu molhava agosto.

sexta-feira, 18 de agosto de 2017

O amor [que sinto]

O amor, 
em algum momento será isso, 
algo de aceitar 
a perda da sanidade 
e aumento da dor selvagem, 
como batida em moleira de criança, 
parada cardíaca demorada. 

Se te acrescenta então saudade, 
se assegure no futuro, 
que o passado não existe 
e o presente machuca 
que nem arame farpado preso 
em dedo sem sapato, 
choque de fio desencapado. 


O amor deixa a gente desenganado,
que nem pinto atropelado.
Tal qual queda de penhasco,
só que nunca chega o chão. 
Mas se quiser tirar da gente
o amor do coração,
nêgo gela as canelas,
sua pelas mãos.
Faz de prece a oração
pra Deus dar um jeito no destino
e manter a união.

domingo, 6 de agosto de 2017

Sopro

O cara acordou cedo. Não se preocupou com o cheiro, acendeu o filtro vermelho de cinco conto que comprou na padaria, ligou o som, botou na rádio. Sabe-se lá o que pensava, mas tragava com vontade, e soprava a fumaça como se quisesse soltar os pulmões, era como gritar. O cubículo, no segundo sopro, estava cheio. Com destreza, acendia um no rabo do outro, sem desperdiçar um trago sequer. Letras apareciam como projeções na fumaça. Imagens se formaram. E o ritual continuou tempo a fio, até o maço ficar vazio. Saiu para comprar outro. Nunca mais voltou, deixou a porta aberta. Até agora ecoa no corredor os gritos no cheiro dos cigarros baratos.

segunda-feira, 31 de julho de 2017

Goiânia, 2017

Recife,
na ladeira rolava a cor.
Academia tocava no alto.
O uai achou o
que faltava no vocabulário
afetivo.
Fez chover,
Fez amor,
Fez força
acordou falando oxe e
tirando confete do ouvido!

domingo, 30 de julho de 2017

De nada

Se o barco afundar,
nóis nada.
Se a estrada acabar,
nóis abre.
Se o vento parar,
nóis sopra.
Se o tempo correr,
nóis espera.
Se o carinho estancar,
nóis ama.
De nada em nada
nóis nada.
Se o fogo pegar,
nóis esquenta.
Se a chama aumentar,
nóis incendeia.
Se a cinza sobrar,
nóis queima.
Se a pedra rolar,
nóis pula.
De nada em nada
nóis continua nadando.

E de nada em nada
nóis tudo.

quinta-feira, 22 de junho de 2017

Abiãn

A renovação de toda e qualquer fé está no abiãn. É ele que faz com que as iaôs e as egbomis perceberem que a roda da ancestralidade continua girando.
O abiãn que lava a casa, que rastela o quintal, que lava a louça, pra que os orixás sejam louvados na melhor das condições, enquanto os mais velhos no santo possam cozinhar, dar banho, dar santo.
Quando as iaôs estão viradas, são os abians que cantam, respondendo o axé dos atabaques, respondendo a voz dos ogãns, fortalecendo as ekedis.
O abiãn renova as esperanças, os desejos que vão se confundindo com o tempo, a paciência que vai se perdendo com a experiência. Nada no terreiro se confunde ao olho brilhante do abiãn apaixonado pelo santo.
Abiãn canta confuso, grita na hora que não devia, bate cabeça onde não carece. Abiãn ri das bobeiras que dá. E olhando pra eles, conseguimos nós que já casamos com o orixá, perceber o quanto o tempo e as responsabilidades nos fizeram carrancudos, ou metidos, ou prepotentes.
Abiãn é a energia do mundo, o começo, o frio na barriga, o olho brilhante, a curiosidade, o riso, a empolgação. Abiãn é aquele que está pra aprender, mas em silêncio deixa o segredo de quem também ensina.
Motumbá aos abiãns, que renovam minha fé todo dia, nas perguntas mais bobas, nos sentimentos mais sinceros, nas dúvidas mais simples. Na força do princípio da ancestralidade.
Se você não é do candomblé, abiãn é a pessoa que chega no terreiro e ainda não se iniciou, ainda não se tornou iaô.

segunda-feira, 5 de junho de 2017

clichê

Uma brecha de luz
Me trouxe um frio
Na barriga
E um calor
No coração.
Se quero o cafuné deixo o beijo,
se quero o oi deixo o adeus,
se quero a saudade deixo o abraço.
Um surto de paixão
me trouxe o riso
de canto
e um brilho
nos olhos.

terça-feira, 30 de maio de 2017

Quando o mundo acabar


Quando o mundo acabar, imagino que teremos alguns sinais mais claros poucas horas antes do espetáculo principal. Que nem show de festival, onde o meteoro é o último a tocar. O céu deve se escurecer, ou o sol não aparecer. Quando isso acontecer, eu quero estar numa plantação de cana, com uma faca bem amolada, um tamborete, tabaco e seda, e dois isqueiros - novos! Eles se perdem, acabam quando menos esperamos, melhor remediar. 
Ver o fim do mundo chupando cana tem um certo trem, quando imagino. Eu quero.

terça-feira, 23 de maio de 2017

As Mulheres

Nasci.
Tinha uma mãe. Outra me amamentou. Outra servia o escaldado.
Já foram três.
Moço, quando eu parti o joelho no meio, minha vó que me segurava no colo dela.
Quando eu senti fome, fugindo da cronologia, minha tia me amamentou.
Eu lembro de cada professora que eu tive.
Cê pira?
E da menina que eu escrevi uma carta e ela nunca me respondeu?
Até me abraçou no outro dia como se nada tivesse acontecido.
Quando eu desmaiei quando, por leseira, bati na pilastra, foi a Lígia que me segurou a onda.
Tudo girava.
Antes de ir pra escola, foi a Maura que me levou.
Paixão infantil é bom porque a gente não lembra depois.
Minha tia era minha professora, e foi a primeira vez que eu fui pra coordenação.
Tinha uma muda também.
E um pé de amora.
A Bruna.
A amiga que morava com a mãe no barraco de adobe.
Mãe de sangue.
Mãe de leite.
Mãe avó.
Mãe de Cristo.
Mãe de Santo.
Mãe gira.
Dama da Noite.
Maria Padilha.
Sete Saias.
Rainha.
Uma mais santa que a outra.
Moço, moleque levado, com tantas madrinhas.
Na fogueira são duas vezes.
Madrinha que cortava meu cabelo. Quem botou a mão na minha cabeça pela primeira vez.
Madrinha do supermercado. Minha lembrança do ovo de páscoa.
Madrinha da cidade onde eu nasci. Quem me esperou.
Madrinha da fogueira, onde renovou nosso laço no fogo.
Madrinha do rio. Da água. Da calma. Da proximidade ancestral.
Madrinha entidade.
De fora as amigas.
São tantas.
Esqueço do nome, mas nunca da cara.
Nem do carinho.
Nem do caminho.
Agradecido.

segunda-feira, 15 de maio de 2017

Conspiração parabólica

Será o dia em que vai entrar pela porta, sorrir ao avistar o pé de tomate que cresce junto com a espada de são jorge, tirar o sapato em cima do tapete, tocar o trenzim de barulinho pendurado só pra ouvir plim plim plim. De dentro do quarto eu reconheço quem preside o ritual.
Abro os olhos, rio, animo. Não visto camiseta, sento assim mesmo no canto da cama e pego a seda. Respondo a homilia da sua chegada, balanço o folheto enquanto canta pra mim. 
O Pipoca aparece pra avisar que tem alguém muito querido em casa. Eu digo que já sabia, enquanto enrolo. Você encosta no portal da porta, com aquela cara mais lavada do mundo, aparando meus medos. Lambo, colo o papel, você oferece o isqueiro, eu aceito. 
Combinamos tão bem. Conspiramos atraentes e atrações.

quarta-feira, 10 de maio de 2017

7 coisas que meu celular, a internet e meus perrengues me ensinaram

1. Pra esquecer algum relacionamento amoroso malacabado não basta só bloquear nas redes sociais e excluir da agenda do telefone. É um processo dolorido de retorno a mim. 
2. Ter mais de mil amigos ou seguidores não me faz bem acompanhado ou não anula o fato de me sentir solitário. A solidão é uma beleza pra desembrulhar coisas velhas e melhor ainda pra jogá-las fora. 
3. Quando alguém (ou eu mesmo) apaga algum post não significa que deixou de pensar diferente. E quando alguém (ou eu mesmo) posta algo não significa que realmente acredita naquilo. 
4. É mais fácil apaixonar por perfil online que por prosa pessoalmente. 
5. Não é porquê acabou a bateria do celular que a minha também tenha acabado. Consigo sobreviver sem esse aparelho. 
 6. Tá tudo meio perdido, tentando se encontrar. 
7. O gigante acordou e pisou em cima da gente tudo.

quarta-feira, 3 de maio de 2017

Vi a mãe

Vi a mãe.
Meio confuso, 
que nem maré alta
que bate em pedra
que arrebenta muralha.
Hoje vi Iemanjá em mim,
que cuida de minha cabeça
que dá colo de mãe
e canto de sereia.
Deixa cair pra ver o choro
e o aprendizado.
Bagunça as vistas,
que nem água salgada.
Nas minhas lágrimas 
mato minhas saudades de Iemanjá. 
Saúdo o mar,
e o rio que cultuam Iemanjá.
Salve a mãe cujo filhos são peixes,
Senhora do espelho de prata,
Rainha do mar.

domingo, 30 de abril de 2017

Cerrádico

Eu, que sempre fui úmido, lânguido e aparentemente chuvoso, sequei o chão, entortei o caule, abaixei. Pego fogo só pra me ver renascer, e enquanto as chamas consomem minhas flores, preparo minhas sementes. Aprendi a guardar líquidos vitais dentro de mim, pra reflorir. Do calor sempre me afeiçoei. Quem passa por esse chão o faz rastejando, encostando a maior parte do corpo. Entre cobras e lagartos, sinto o toque e esquento a relação. Terra inflamável, só sobrevive quem sabe correr quando necessário. Em mim nascem as águas que saciam a sede, que fazem crescer as árvores de um país inteiro. Crescem os poços, tomam banho em mim, mergulham, me bebem. Escorro-me. Por fora sequidão, por dentro mar aberto. Empobrecido de nutrientes, aprendi me valer com o pouco que me sobra. Ainda assim me divido, me retorto, me refaço pro mundo. Me destroem. Acho lindo os amazônicos, mas valorizo os cerrádicos.