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segunda-feira, 30 de janeiro de 2017

O Coelho

O coelho tem dificuldades em assumir o que enxerga nas outras pessoas. Quando conheceu Marisa, por exemplo, ficava horas tentando se convencer de que ela era mesmo aquilo que se mostrava, afinal alguém que compra balas de manhã e as guarda para abrir os pacotes ao meio dia com a desculpa de que tem hora para comer balinhas. Por mais fofinho que seja, o coelho não confia nas pessoas, mas finge com sua carinha arredondada, seus pelos fofinhos e olhares sutis. Marisa nunca convenceria o coelho de que é certo ter horário para uma coisa dessas. De qualquer forma, nem eu confio em quem tem horário para chupar balas.
Marisa não é essa mulher corretíssima, descobrirá mais na frente. “Aliás, quem o é?”, perguntava todas as vezes que alguém tentava justificar que algumas pessoas são certinhas demais. “Rapaz, as pessoas fingem, e fingem tão melhor que você. Se lembra daquela vez que sua pupila dilatou quando foi tentar mentir sobre o amante do seu amigo? Pois é, tem gente que nem dilata a pupila”. O coelho era desses, nem pupila dilatava. Uma vez decidiu dizer pra seu pai tudo o que o incomodava e que não gostava naquela figura de macho alfa, no entando o faria ao contrário: “Oi, pai. O senhor é uma das pessoas mais incríveis que conheço. Sabe respeitar os limites dos outros e, não sei como, equilibra seus desejos com suas responsabilidades de uma forma tão leve...” e por aí vai. Olhava nos olhos do homem com tanta veemência que o fez acreditar que era bom. Depois disso, todas as vezes antes de dormir exercitava seu talento em mentir e mentir e mentir.

Começou a estudar muito jovem, aos 7 já estava na frente de muitos coleguinhas. Aos quatorze lia Saad. Contava uma história como ninguém aos dezoito. Aos vinte e quatro segurava a onda nos bares, quando os amigos não conseguiam mais beber e arranjavam briga por qualquer coisa. Aos vinte e oito parou de sair, redescobriu-se antissocial e preferiu prestar um concurso público que o fizesse ganhar bem sem trabalhar finais de semana. Assim o fez. Aos sessenta tomou chumbinho, morreu sozinho em casa, numa tarde de calor, vendo Desventuras em Série na Netflix. Numa carta que deixou, se mostrava confuso e ao mesmo tempo de saco cheio dessas novas modinhas, além do mais impaciente pra esperar mudar alguma coisa. “Já vi mudanças demais, e já me basta morrer vendo Netflix”. No dia anterior havia excluído a conta do Facebook por considerar demais morrer e virar um túmulo virtual.

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