O coelho tem dificuldades em
assumir o que enxerga nas outras pessoas. Quando conheceu Marisa, por exemplo,
ficava horas tentando se convencer de que ela era mesmo aquilo que se mostrava,
afinal alguém que compra balas de manhã e as guarda para abrir os pacotes ao
meio dia com a desculpa de que tem hora para comer balinhas. Por mais fofinho
que seja, o coelho não confia nas pessoas, mas finge com sua carinha
arredondada, seus pelos fofinhos e olhares sutis. Marisa nunca convenceria o
coelho de que é certo ter horário para uma coisa dessas. De qualquer forma, nem
eu confio em quem tem horário para chupar balas.
Marisa não é essa mulher
corretíssima, descobrirá mais na frente. “Aliás, quem o é?”, perguntava todas
as vezes que alguém tentava justificar que algumas pessoas são certinhas
demais. “Rapaz, as pessoas fingem, e fingem tão melhor que você. Se lembra
daquela vez que sua pupila dilatou quando foi tentar mentir sobre o amante do
seu amigo? Pois é, tem gente que nem dilata a pupila”. O coelho era desses, nem
pupila dilatava. Uma vez decidiu dizer pra seu pai tudo o que o incomodava e
que não gostava naquela figura de macho alfa, no entando o faria ao contrário: “Oi,
pai. O senhor é uma das pessoas mais incríveis que conheço. Sabe respeitar os
limites dos outros e, não sei como, equilibra seus desejos com suas
responsabilidades de uma forma tão leve...” e por aí vai. Olhava nos olhos do
homem com tanta veemência que o fez acreditar que era bom. Depois disso, todas
as vezes antes de dormir exercitava seu talento em mentir e mentir e mentir.
Começou a estudar muito jovem,
aos 7 já estava na frente de muitos coleguinhas. Aos quatorze lia Saad. Contava
uma história como ninguém aos dezoito. Aos vinte e quatro segurava a onda nos
bares, quando os amigos não conseguiam mais beber e arranjavam briga por
qualquer coisa. Aos vinte e oito parou de sair, redescobriu-se antissocial e
preferiu prestar um concurso público que o fizesse ganhar bem sem trabalhar
finais de semana. Assim o fez. Aos sessenta tomou chumbinho, morreu sozinho em
casa, numa tarde de calor, vendo Desventuras em Série na Netflix. Numa carta
que deixou, se mostrava confuso e ao mesmo tempo de saco cheio dessas novas
modinhas, além do mais impaciente pra esperar mudar alguma coisa. “Já vi
mudanças demais, e já me basta morrer vendo Netflix”. No dia anterior havia
excluído a conta do Facebook por considerar demais morrer e virar um túmulo
virtual.
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