Páginas

sábado, 27 de março de 2010

Dona Mulher - o som

A mulher ainda se contentava a ouvir música. Não sabia ao menos quem estava cantando, mas a mulher não queria saber da existência de outra pessoa no mundo se não ela mesma. Para a mulher já não existia ninguém. Sua lembrança de outras pessoas da infância já não lhe importara. Apertava play e a fita tocava e tocava e ela dançava como se ninguém a visse. Ninguém via a mulher senão pelas sombras da janela. Ninguém via as sombras da mulher. A mulher estava invisível aos olhos das pessoas. As pessoas eram invisíveis aos seus olhos de mulher. A mulher escolhia quem via e suas escolhas já estavam muito limitadas. A mulher já não escolhia nada a não ser ficar ali, no seu apartamento esperando que as coisas acontecessem. As coisas escolhiam pela mulher. A mulher falou, em um suspiro, tudo o que pensara até ali. A mulher estava tentando excluir todos os seus pensamentos anteriores. A música tocando, tocando, tocando. “Vai”! Gritou a mulher. Foi a última coisa que falara a mulher. As palavras já não apareciam em sua boca. As cordas vocais da mulher se viam travadas.
A mulher andou mais um pouco, rodeou a sala-quarto-cozinha ao som da música. A música levava a mulher. A música escolhia para a mulher. Soava tão doce aquela melodia. As memórias da mulher paravam pela cabeça feminina e ela dançava e as fazia passar. A mulher queria nada. O nada ficou na cabeça da mulher.
Uma lágrima lhe percorreu todo o rosto. A mulher chorava compulsivamente. A mulher tentava entender porque aquilo acontecia e não obtinha respostas. A mulher não queria ter respostas. Naquele momento ela só queria chorar. E já que estava com vontade de chorar, chorou, chorou, chorou. A mulher não se dava ao luxo de parar de chorar. A mulher se deu o luxo de quase morrer de chorar.

Nenhum comentário:

Postar um comentário