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quarta-feira, 24 de março de 2010

Dona Mulher

Mulher. Seios pequenos, cabeça pequena, cabelo liso pequeno, olhos grandes como bolas de fogo, mas um fogo azul natural e incendioso. Se questiona da vida, se questiona do acordar do sono a morte. Aliás, ela não se questiona, ela sabe que não encontrará respostas pro que pergunta então cria sempre mais perguntas, e mais, e mais e mais... até não terem mais perguntas lógicas. A partir daí ela faz perguntas desconexas com qualquer realidade menos a dela. Ela já tem uma realidade desconexa. Desconectada com o mundo, a mulher sentada em seu sofá, de vez em quando vai a janela, observa a cortina e volta, dá uma volta no sofá e senta-se de novo. Arruma as flores secas no escaninho no canto direito da sala como se elas ainda ressuscitariam. Ela, a mulher, pensa que ressuscitará. Talvez sim, ou talvez ela somente descubra que ela ainda não morreu e só se ressuscita quem morre. Ou morreu e esqueceu de avisar os parentes. Ela tem dúvidas sobre a morte, sobre a vida. Não consegue entender como as pessoas conseguem pensar em outra coisa que não a vida e a morte. Um dia ela responderá todas suas dúvidas, ela tem fé. A mulher de fé inabalável acredita. "Ela acredita em anjos e, porque acredita, eles existem". E o que se passa com ela é mais que uma doença mental. É inspiração. A mulher vive, e porque vive, duvida. Talvez ela tenha um amor, um grande amor, que a deixou. Talvez ela não tenha amado ninguém. A mulher está sempre em seus extremos. É difícil desvendá-la. Nem mesmo a própria se desvenda. O universo tenta desvendá-la, ela mesma tenta compreendê-la, mas quanto mais ela tenta, quanto mais o universo se intromete na vida da mulher, mais ela se perde. Se perde tentando encontrar-se.
A mulher não tem relógio, não tem óculos, não tem cigarros, não tem ambições. Sua casa é formada por uma sala, que faz de quarto, cozinha. O banheiro é no corredor. Ela não daria conta de olhar todos os dias em um espelho, e se tivesse um banheiro só para si, teria que ter um espelho. Por isso a mulher escolhe dividir o banheiro. É uma banheiro comunitário. A mulher tem dessas coisas. Sozinha demais. Tão solitária que o vazio que se cria nessa falta de relação a faz querer dividir. Ela sabe das horas pelo sol. Mas não olha o sol diretamente. A mulher está sempre atrás das cortinas. Precisa se esconder dos olhos das pessoas. Como se as pessoas a olhassem. Os outros não sentem sua falta, nem se dão conta de sua presença ali. Os vizinhos. O velho do apartamento ao lado, a gorda do apartamento de baixo e as crianças do apartamento de cima não sabem que ela está ali. Ou sabem e fingem não saber. Eles só conhecem o rapazinho. O misterioso rapazinho que leva uma vasilha, todos os dias para a senhora. Dentro da vasilha está o sustendo material da mulher. Comida. Ela já não sente vontade de comer. Preferiria definhar até não conseguir mais e acordar do sono. A mulher não conversa, porque acha que é desperdiçar energia demais falando, falando, falando. Ela só pensa. Às vezes dança. E dançando, ela descobre o ar ao seu redor. O ar. O ar tem sido o único companheiro da mulher a anos. A mulher e o ar, um relacionamento amoroso, amigoso, perturbado. Se ela pudesse, nem o ar a faria companhia. A mulher é antissocial. A mulher gosta de companhias. Só não as suporta por muito tempo. Ou suporta demais, a ponto de fazê-las tão inesquecíveis e eternas que não se precisa mais da presença física, quando vão embora. Quando iam embora. A mulher já não recebe visitas a anos. O ar é sua única companhia. E se pudesse, ela mandaria o ar embora.
A mulher tem um par de roupas. Quando começara a enlouquecer a mulher havia mandado que instalassem uma pia na sala de estar. Ela já sabia que não gostaria de ter que andar mais de 6 metros para lavar roupas. Um vestido amarelo, desbotado, velho, sem a metade dos botões inferiores. O vestido amarelo era seu preferido. O lavou poucas vezes, a fim de não desgastá-lo mais que o desgaste inevitável do uso diário e cotidiano da mulher. Cotidiano. A mulher vive seu cotidiano com seu vestido amarelo. O vestido roxo de renda fica encostado em um dos cantos da sala de estar de 6 metros quadrados da mulher. Ela não gosta tanto desse quanto do outro. Sempre tem-se uma preferência e a da mulher é por amarelo. A mulher deve pensar o quanto é amarelo o sol. A mulher não pensa sobre essas coisas. Ela pensa em poder parar de pensar. Ela quer parar de pensar e poupar energia. Já não fala, já mal come, já mal vai ao banheiro. A mulher já mal tem energia. Quantos anos tem essa mulher quase sem energia. A mulher já tem idade para ser mãe. A mulher esconde até de si mesma a sua idade. A mulher começa a pensar nos anos passados de sua vida, então se levanta e vai a janela, observa a cortina, volta, passa por trás do sofá e senta-se de novo. Uma caixa preta a sua frente a incomoda. A mulher se incomoda com as coisas que parecem sem importância, ou que são sem importância. Para a mulher, tudo o que existe tem que ter no mínimo significado. A mulher já percebera que estava perdendo seu significado. O significado da mulher se perdia junto à sua energia.
Quando se passa muito tempo sem nada para fazer, a mulher levanta, vai à janela, observa a cortina sempre fechada. A cortina tampa totalmente a janela, que parece ser de vidro. A mulher não sabe de que é feita sua janela. A cortina é azul turquesa, com bolas de todos os tamanhos preenchidas de rosa. Na parte superior tem uns babados de crochê. A mulher gosta de crochê. Na parte inferior da cortina rosa e azul não tem nada demais. É como todas as cortinas rosa e azul que a mulher já havia visto. Depois de observar a cortina, a mulher volta pensando em algo que nem ela entende. A mulher sempre pensa coisas que não entende. A mulher voltou. A última vez que a mulher pensou. Na última vez que pensou alguma coisa, a mulher rodou, sentou-se em seu sofá lilás, descansou sua cabeça em um dos braços do sofá lilás e suspirou. Uma, duas, três. Na terceira ela soltou todo o ar e perpetuou sua existência. A mulher acorda do sono.

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